- Lari Pestana
- 21 de mar.
- 6 min de leitura
Eu me lembro…
Eu me lembro quando tinha 3 anos e joguei um caroço de uva no quintal e você me pediu para recolher e guardar até que entrássemos em casa para jogarmos no lixo. Sua voz era doce e suave, cheia de paciência e amor.
É minha primeira lembrança da infância.
Também me lembro de cada presente de natal, cada história contada, cada vez que me levou para aprender a andar de bicicleta. Minha vez preferida foi quando estávamos visitando meus avós no Rio de Janeiro e eu aprendi a andar no terreno irregular, subindo e descendo a rua da vila, feliz de mostrar pra família inteira o que eu tinha aprendido de você.
Na mesma viagem empinamos pipa. Foi incrível. E foi ali que você teve a ideia de me mostrar como era soltar balões na época de São João.
Fizemos isso quando voltamos para casa e o mês do meu aniversário chegou.
Eu não me lembro do que ganhei naquele ano, mas me lembro de quando soltamos o balão mais bonito que eu havia escolhido e ele acabou pegando fogo e caindo no quintal. Eu chorei descontroladamente achando que tudo tinha acabado, que eu tinha feito algo errado, que eu não sabia fazer nada.
Você me abraçou e disse que estava tudo bem, que ainda havia outros balões e podíamos tentar de novo.
Eu não sei exatamente em que momento essa paciência acabou. Mas sinto que ela foi se esvaindo aos poucos…
Quando tirei minha primeira nota baixa - em uma escola em que a média era 7, tirei um 6,5. Ouvi uma bronca como nunca antes, xingamentos e fiquei de castigo. Nunca entendi muito bem como isso ajudaria a melhorar minhas notas, mas enfim.
“Pelo menos não apanhei como meus colegas”, pensei.
Apesar disso, as palmadas vieram em outros momentos.
Me lembro vividamente de um dia em que estava lavando o cabelo e, do nada, levei uma chinelada. Eu já não era tão pequena, sabe. Estava com o corpo inteiro embaixo d’água, cantando ou falando comigo mesma, como de costume… por que não me cutucaram? Por que não encostaram no meu ombro?
A chinelada foi a primeira coisa que veio à sua cabeça… por quê? Por eu não responder quando vocês queriam?
Com o passar do tempo, vi que era esse mesmo o problema. Demorou, mas entendi.
Entendi quando, aos 11 anos, descobri que era bissexual. Eu nem namorava, nem nada, mas claramente elogiava muitas meninas e mulheres perto de vocês. Será que isso incomodava?
As respostas eram sempre “é, mas aquele menino também é bonito, não é? Olha aquele ator! Um galã!”. E eu nunca entendi por que não podia achar os dois gêneros belos à sua maneira.
A confirmação veio com o meu primeiro namoro - o que eu tive coragem de assumir, por ser com o sexo oposto… - quando ouvi “temos que agradecer por ela estar já com 15 anos… e ser um namoro normal, com tanta adolescente por aí querendo ficar com menina”.
Acho que foi a primeira vez que eu entendi que as violências verbais machucavam tanto quanto as palmadas e chineladas - que já eram mais frequentes nessa época.
Eu sempre agradeci por ter tido uma infância boa, sabe? Eu realmente não era uma criança que apanhava ou era espancada, apanhava de cinta e espada de São Jorge, como vários colegas meus.
Mas, na minha adolescência - quando minha personalidade começou a se firmar, mostrando quem eu era e o que eu pensava -, isso começou a se tornar um problema um pouco maior.
Os almoços eram o pior momento do meu dia.
Todos os dias eu trazia algo diferente que havia aprendido na escola, e eu tinha que escutar de você que estava sendo burra, acatando qualquer coisa que me diziam, que eu devia pensar por mim mesma, estava me tornando um robô…
Teoria da Evolução.
Escola Peripatética.
Leis fundamentais da Física.
Isso tudo o irritava.
Eu estava em formação.
Aliás, acredito que todos nós ainda estamos.
Custava repensar essas frases antes de proferi-las a mim?
Ou, melhor, só… escutar sobre meu dia?
Na minha primeira faculdade, entrei em contato com mundos totalmente diferentes do meu. Tudo aquilo que eu havia vivido até ali era apenas uma bolha, na qual eu fui protegida por muito tempo. Mas estava realmente passando da hora de entender que o mundo era muito mais do que aquilo que eu estava acostumada a viver.
Por mais que a coleira ainda estivesse apertada, eu a forcei muito. Conversei, dialoguei, briguei, me calei em protesto. Mas consegui fazer minhas amizades, ir aos lugares que queria ir, cometer meus erros e acertos e aprender através deles.
E não me arrependo de nada.
Mas também não me esqueço de nada.
Não me esqueço do olhar de reprovação a cada pensamento meu que eu tentava conversar sobre. Os gritos de “deixa de ser burra, você está sendo doutrinada, que mente fraca!” que tive que ouvir ao longo de muito tempo.
Quando resolvi pintar meu cabelo… uma mecha! Uma mecha azul foi o suficiente para um “se você for espancada na rua, não adianta me ligar como contato de emergência. Não vou atrás de salvar filha que quer ser confundida com lésbica”.
Era a época daquele filme “Azul é a Cor Mais Quente”.
Eu nem havia ouvido falar sobre ele ainda.
Meses depois, assisti.
Eu odiei.
Mas segui amando meu cabelo azul, porque uma coisa que nunca fiz foi abaixar a cabeça pra qualquer tipo de opressão, em casa ou na rua.
Ou, pelo menos, eu achava que não.
Bom, eu fui ensinada a me defender e ter minha própria opinião.
Mas, claramente, isso nunca foi bem vindo dentro de casa.
Antes de sair de casa, vez ou outra recebi tratamentos de silêncio que nem sabia de onde vinham.
Nunca conseguia conversar.
Quando chegava em casa, era um no escritório, outro na frente da TV… tentava uma comunicação, mas sempre senti que estava atrapalhando.
Então ia pro quarto.
Depois, levava bronca porque não saía do quarto.
Essas broncas só escalavam… já ouvi coisas demais que me machucam até hoje.
Não me esqueço também de quando tive anorexia.
Simplesmente não conseguia comer.
Perdi 10 quilos em uma semana.
O que ouvi de você?
“Não quero essa frescura de ‘doença alimentar’ dentro de casa não, vai comer sim. E se não quiser, vai morrer de fome”.
Foi o que quase aconteceu.
Aliás, nessa época eu poderia muito bem ter morrido de fome ou pelos cortes.
Só não morri por eles porque realmente tinha muito medo de ser encontrada em casa, sobreviver e as coisas serem piores depois.
As últimas vezes em que brigamos conseguiram ser as piores.
“Me arrependo de ter te adotado”
“Você nos odeia porque te adotamos”
“Você se faz de vítima”
“Você não tem doença mental nenhuma, só é uma eterna criança que não quer crescer e acha que o mundo gira à sua volta”
“Sai da minha casa!” (essa última, colocando a mão na minha cara)
E você espera que tudo fique bem?
Fora as vezes em que ouvi que “filho de sangue é diferente de filho adotado sim, você precisa engravidar”.
Eu nunca pedi pra ser adotada, mas sempre fui grata pelo fato de vocês terem sido os escolhidos para me darem uma família.
E sou obrigada a aceitar escutar tudo isso?
E ficar calada?
Você acorda no dia seguinte como se nada tivesse acontecido, de alma lavada.
E eu?
Voltar a visitá-los toda vez faltando mais um pedaço do meu coração?
Não mais.
Quer afeto, mas sempre achou que dinheiro era o suficiente.
“Te dei tudo que sempre precisou”. Ama jogar na minha cara.
Sim. Tudo de material.
Mas, a partir da minha adolescência, como já disse, não entendo o que aconteceu.
Perdi colo, perdi abraços, perdi carinho, perdi o afeto. E acabei me distanciando.
Afinal, se uma flor não é regada, ela morre, não?
Não adianta berrar com ela, xingá-la e exilá-la. Nada disso vai fazê-la voltar ao que era antes.
E hoje, finalmente, eu entendo.
Entendo que você queria uma boneca. Que é linda, fica quieta, se comporta do jeito que você quer, não pensa, não fala, não se expressa.
Mas eu não sou assim.
E eu não vou me diminuir mais para caber num mundo tão pequeno e mesquinho como é o seu.
Cansei de me machucar, agora é hora de me curar e não deixar mais que isso ocorra.
Sinto por tudo que passei, não sinto por ser quem eu sou.
Mas não acredito que precisemos passar por tudo isso para aprendermos a ser pessoas fortes.
Acredito que, com mais carinho, eu também poderia crescer forte.
E com bem menos traumas.
Então, esta é uma despedida.
Porque eu não quero mais na minha vida alguém que não faz questão de me aceitar como sou: alegre, espontânea, dona de mim.
E graças a tudo isso que aconteceu, pude ver que realmente não estou sozinha. Não preciso ter alguém assim por perto quando há tantas outras pessoas maravilhosas que não têm nada além de amor para me dar.
Pessoas que dizem “não é porque você caiu que a corrida acabou, é só levantar” ao invés de “eu sabia que você não ia conseguir passar nesse concurso”.
Pessoas que dizem “foi só um dia ruim, hoje você pode recomeçar e está tudo bem” ao invés de “pare de se vitimizar”.
Pessoas que me dizem “eu te amo” todos os dias, independentemente de estarem ao meu lado ou do outro lado do mundo, ao invés de dizerem “você me odeia” porque não pude (ou não quis) visitar (para evitar mais sofrimento).
Então, é isso.
Não me sinto culpada.
Me sinto leve.
Espero que isso entre na sua alma.
Adeus.